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“Só a experiência própria é capaz
de tornar sábio o ser humano.”
(Sigmund Freud)

Condições para que o ato ocorra e seus afeitos

Postado por admin em 13/jun/2018 - Sem Comentários

Andrea Silvana Rossi

O significante ato pode ser associado, num deslocamento metonimico, a distintos atos: atos falhos, ato sintomático, passagens ao ato, acting out, ato analítico. Todos, formações do inconsciente. O ato psicanalítico é um ato inconsciente, algo que escapa à lógica e ao controle racional.

Desde Freud sabemos que todo ato inconsciente é um ato bem sucedido. Que esta forma do inconsciente se revelar possibilita o acesso à verdade do sujeito ou pelo menos, aponta sua verdade. Portanto, um ato não é sem consequências, ele desacomoda, produz uma mudança. Possibilita ir além, ultrapassar algo e, há a impossibilidade de retorno.

Portanto, um ato quebra a repetição, a tendência à homeostase, a morte, por isso, a rigor, todo ato pode ser pensado como erótico, uma vez que coloca em circulação as pulsões de vida (Zygouris, 1999).

Mas existem condições para que o ato se dê.    Vou partir da ideia de que o analista precisa suportar o ato, ou mais precisamente, deve suportar o horror ao ato (Lacan, 1967).

O ato causa horror porque abala o narcisismo do analista. Em 1917 no texto “Uma dificuldade da psicanálise” Freud colocava a descoberta do inconsciente como o terceiro abalo narcísico da humanidade. Primeiro foi a descoberta de Copérnico que, na idade Média, tirou a terra e o homem do centro do universo; em seguida, as publicações e diários de viagem de Darwin que demostrou que o homem não teria sido feito à semelhança do criador, tendo sido retirado do centro da criação para ser visto como produto da evolução biológica do animal. Assim, Freud abriu mais uma ferida narcísica à humanidade e mostrou que o eu, o homem consciente, não é o responsável por seus atos e decisões.

Se a existência do inconsciente revela que o eu não é senhor na sua casa, a cada ato analítico encontramos a confirmação desta verdade. O ato, como toda formação do inconsciente desconcerta porque produz a surpresa frente ao desconhecido. O momento do ato pode ser pensado como o instante de perda de controle egóico numa analise. Então, suportar o ato e o horror ao ato também é suportar a quebra narcísica decorrente dele e do não saber.

Na psicanálise o saber está em constante construção. Psicanalisar é uma praxis onde o Saber -fazer leva ao encontro com a verdade ultrapassando o não saber. Trata-se de descobrir a verdade. Descobrir no sentido de perceber, mas também no sentido de enxergar algo que já estava lá, mas não podia ser visto, que estava encoberto. Esta idéia nos remete às reflexões de Freud (1905) sobre o trabalho do psicanalista quando afirma que o psicanalisar pode ser comparado ao trabalho do escultor “que funciona per via de levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida.” (p.244)

O ato que possibilita levantar o véu que encobre a verdade ou o ato que permite retirar os excessos de matéria que cobrem a escultura não pode ocorrer sem a ansiedade característica do confronto com o desconhecido.

O ato analítico é um ato para além do saber construído a priori. É um ato inexato e imprevisível. É só depois, num segundo tempo, que pode se saber disso que estava por trás do véu e da matéria.

Uma intervenção, interpretação, fala, gesto ou silêncio de um psicanalista pode-se configurar como um ato e levar a uma mudança de posição subjetiva, e isso pode ocorrer desde a primeira sessão. Ou seja, não há um tempo específico para que o ato ocorra, uma pergunta ou interrogação pode ter a força de um ato, o que contraria a ideia tão difundida de que uma análise é um processo muito demorado. Uma análise levada a termo pode demorar mais tempo, mais os efeitos do ato analítico podem ser vistos e sentidos desde um primeiro encontro. Não rir junto com o paciente frustrando sua expectativa (simplesmente porque não se achou graça do falado) pode ter o valor de um ato. Assim como, um espaço de silêncio do analista pode ser gritante para o paciente e reorganizar sua rede de significações.

Para o analista o ato enquanto corte de sentido se impõe como uma urgência temporal. Momento do circuito pulsional em que o ímpeto, a força pulsional pressiona (drang) para a descarga e consequente satisfação. E somente uma ação pode viabilizar a descarga. Pressão que precipita o agir do analista e o momento de conclusão no analisando. Mais do que buscar compreender, o psicanalista age. Suportar o horror do ato é se permitir viver a vertigem de sentido que é própria dos momentos mais fecundos de uma análise.

Por isso, a clínica psicanalítica não pode ser da ordem da constância, se ela se tornar constante, perde-se a oportunidade da revelação, da surpresa que emerge frente ao novo. A revelação do novo nos leva de encontro ao real e este encontro nunca se esgota. (VEGH, 1998)

Portanto é evidente que não podem ser somente as teorias ou os conhecimentos teóricos que sustentem o ato analítico. Somente a partir da sua analise, o analista poderá suportar a quebra narcísica decorrente do ato. Trata-se do ato de passagem do psicanalisante a psicanalista.

O conhecimento, as construções teóricas e mesmo a erudição de nada servem se o candidato a analista não tiver frequentado o divã. O saber da psicanálise é sedutor, mas palavras difíceis e falas compreendidas por poucos, muitas vezes, mascaram a falta de castração e a manutenção do narcisismo. Conhecimentos que facilitam a ilusão de controle, a possibilidade de “todo” saber, de encontrar as respostas para tudo e todos. Pode ser, nas palavras do Lacan, a “paixão pela ignorância”[1], que é não querer saber de nada disso ou não querer saber do real.

Lacan insiste neste seminário na ideia do “eu perco” vivido pelo analista e que nada mais é do que poder se perder no não saber, no confronto com o real. E Somente quem já se confrontou com o real no interior da sua própria análise pode suportá-lo novamente, no encontro analítico.

Portanto é condição para que exista o ato que exista psicanalista. Não há ato sem analista. E ainda, só pode se saber o que é o ato se se sabe o que é um psicanalista.

Mas, se por um lado o analista precisa suportar e mesmo se entregar ao não saber e a surpresa e, ainda, se somente sabe dos efeitos do seu ato depois, a posteriori, por outro lado, o ato também não é um mergulho na escuridão do abismo. Não é um ato infundado, aleatório e no total não senso.

São os significantes enunciados pelo paciente que moldam o ato analítico. O analista escuta, capta os significantes, a enunciação do discurso do paciente e age atravessado por isso. Trata-se do eco do discurso do paciente na cadeia significante do analista. Compreender o sofrimento do analisando implica em experimentá-lo de alguma forma, não pela via idenfiticatória, mas como um momento de comoção que é traduzido em ato. Um se deixar tocar pela dor do outro. Pois, no momento do ato o analista se deixa tocar pelo afeto que acompanha a enunciação, trata-se do real da clínica.

Captar o sentido daquilo que é dito implica numa identificação aos significantes. Isso somente ocorre em transferência. Fora do manejo da transferência não há ato analítico.

A transferência facilita a escuta flutuante do analista. Ao sentir a transferência consolidada o analista pode intervir mais livremente, se permitir ser tomado pelos significantes que o invadem, falar, agir sem pensar antes de faze-lo. Essa leveza na relação remete à ideia de que grande verdades podem surgir numa festa. Como no banquete de Platão, onde a música, comidas e bebidas servem de suporte ou pano de fundo para o surgimento de um também banquete de ideias ou mesmo, para construir uma filosofia. Ainda, vale lembrar o fecundo momento de inspiração de Vinicius de Moraes que, sentado na mesa de um bar, escreveu aquela que será a sua música mais executada fora do Brasil, “Garota de Ipanema”.

Mas, se estar em transferência é condição para que o ato se dê, também trata-se de não entrar na dinâmica narcísica do amor. Pois a cada ato o analista se retira do lugar do sujeito suposto saber e “produz tensão” na relação transferencial ou, em outras palavras, abala a transferencia. (Lacan, 1967)

Enfim, é condição para o ato a consolidação da transferência, mas também permitir seu abalo e permanecer como resto, objeto perdido, destino de analista.

BIBLIOGRAFIA

FREUD (1905) Sobre a Psicoterapia. IN : FREUD, S. Obras Completas, R.J. : Imago, 1974.

FREUD (1917) Uma dificuldade da psicanálise. IN : FREUD, S. Obras Completas, R.J. : Imago, 1974.

LACAN, J. O seminário. Livro 15: Ato psicanalítico (1967-1968). (Versão brasileira fora do comércio)

VEGH, I. Hacia una clínica de lo real. Buenos Aires : Paidós, 1998.

ZYGOURIS, R. Pulsões de Vida. São Paulo: Editora Escuta, 1999.

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