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“Só a experiência própria é capaz
de tornar sábio o ser humano.”
(Sigmund Freud)

Talhe: letra de bom talho

Postado por admin em 13/jun/2018 - Sem Comentários

“Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: às vezes apenas um segundo.”
Lewis Carrol

Um texto é sempre um recorte. Um instantâneo que revela algo de um determinado momento e por mais que se tente contextualizá-lo, a sensação é de que quase tudo da história fica de fora. Como expressar num texto, tempo e espaço urdidos numa clínica pelo fio do desejo? Desejo, espera-se, de analista. Nas palavras de Lacan (1968): “Não esqueçamos que o psicanalista é suposto ter chegado a esse ponto em que, por mais reduzido que seja, se produziu para ele esse término que comporta a evocação da verdade. Desse ponto de ser, supõe-se que ele seja o Arquimedes capaz de fazer girar tudo o que se desenvolve nessa estrutura primeiramente evocada, cuja delimitação por um ” eu perco” pela qual comecei, dá a chave”.

Mas voltando à questão: como expressar num texto, um lugar tão restrito, o ocorrido na experiência clínica? Talvez, recorrendo à literatura, nas palavras de Guimarães Rosa: “Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto;

dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.” ou na psicanálise , até ao pé da letra.

Este texto é consequência de um cartel sobre o seminário de Lacan, O Ato Psicanalítico, realizado na Associação Psicanalítica de Curitiba, desanolado no início de 2013. Alguns títulos vieram à cabeça durante a realização do trabalho: o tempo do ato, o hiato do tempo (modificando o espaço); o ato um recurso do analista?; para que um ato aconteça…; o ato, possibilidade de acontecimento do sujeito do desejo; a hora do espanto; o que é ser um psicanalista ? Mas, pelo gosto que me suscita o jogo das letras, acabei escolhendo um título que coincide com uma das definições da palavra talhe no dicionário, ou seja: talhe: letra de bom talho.

Nasce um psicanalista. Onde? No divã, ou a caminho dele, ou na volta. Ou quem sabe ainda, nas muitas voltas da pulsão….Quando? No percurso de uma análise. E por quê? Porque essa experiência possibilita uma mudança na posição discursiva da qual advém um psicanalista. E como nasce um psicanalista? Esse é o x da questão, demonstrado no seminário de número 15 de Lacan: o percurso daquele que entrou em análise como analisante a partir de um ato – que não é qualquer – e que também a partir de um ato psicanalítico sai como analista. Temos aí ato psicanalítico e psicanalista, dois conceitos que concernem à psicanálise.

Como estava dizendo, nesse Seminário, proferido nos anos de 1967 e 1968, Lacan trata do estatuto do ato psicanalítico. Como todos os demais, tem um contexto histórico.

É posterior ao seminário A lógica do fantasma , contemporâneo da elaboração a instalação do procedimento do passe e inacabado porque interrompido pelo movimento estudantil de maio de 1968. Nele, a partir do grafo da alienação, Lacan demonstra o percurso de uma análise, o qual leva um analisante no final de sua análise à posição de analista pela operação do próprio psicanalisante em depor o sujeito suposto saber.

Ato psicanalítico “é um estranho par de palavras que, para dizer a verdade, não foi usado até hoje”, diz Lacan na abertura do seminário. Ou seja, um termo inédito assim como aquilo que ele provoca. Um ato que se efetua somente pela linguagem, onde se sabe, a dimensão do Outro é sempre presente e que se sustenta na transferência. Não o confundamos portanto, com o agir. O ato segundo Lacan é um conceito muito importante na teoria psicanalítica: tendo a ver com a palavra e o corte, engendra o
sujeito do desejo. Conceito que traz novamente a questão sobre o que faz um psicanalista no sentido do que faz um psicanalista ser um psicanalista e no sentido de que o seu fazer tem consequências. Um corte feito pela palavra. Pensando nesse ato como talho que atalha, encontrei no dicionário para atalho: caminho fora da estrada principal, pelo qual se encurtam distância; digressão, caminho, estrada, senda, trâmite, trilho, vereda, via e viela. E sobre talho encontrei: ato ou efeito de talhar ou cortar; talhamento, talha; corte produzido por fio ou gume: deu um talho no dedo; modo de cortar ou talhar uma roupa; talhe: alfaiate de bom talho; feitio, feição, talhe: letra de bom talho; corte de ramos das árvores; desbaste, poda; corte e divisão da carne para a venda; cepo sobre o qual se retalha a carne; açougue.

Voltando ao campo psicanalítico: um corte que produz um atalho. Tempo e espaço se rearticulando. Mudanças das coordenadas em relação ao Outro. Por aí vai meu pensamento: um novo lugar para o sujeito habitar vai sendo criado, construído nesses cortes linguageiros, geradores de espaços vazios que convocam e engendram o sujeito do desejo.

Uma das reflexões que surgiu com mais vigor durante o percurso do cartel foi de que
essa imagem do caminho, do atalho não era boa se fosse pensada como um caminho de
começo, meio e fim. O atalho do ato pelo talho da palavra produz um caminho diferente. Aquele caminho em que no momento do corte, começo e fim coincidem.

Começo e fim no mesmo ato, no mesmo instante. E aí a importância da topologia para
sacar qual é a desse caminho. Emprestando uma frase de um texto de Vera Pollo (2011):“há um efeito topológico que permite dizer que, somente no ato o sujeito é idêntico ao significante “ . E numa questão proposta por Clara Cruglak (2012), “O ato se escreve no limite da metáfora, quando a remissão da significação toca a dimensão da verdade do sujeito; com o limite mesmo da metáfora que se materializa em amálgama de som e sentido. Bastão, linha, reta, reta ou torta. O ato ao ser escrito escreve o inacabado da metáfora, aponta para o lugar da letra por vir, no traço que suporta a cifra que o promove.”

Um caminho onde início e fim coincidem. Um corte que produz um fim e a possibilidade de um recomeço: inédito, singular, original. Há um antes e um depois do ato segundo Lacan. Nas palavras de Alain Didier- Weill (2009): “portanto, fim de análise como surgimento de uma nova relação com o tempo: tempo que já não é o da culpa freudiana, mas, antes, aquele em que se conjugam o trágico humano e o entusiasmo. Vejo a capacidade de encontrar o riso dionisíaco no próprio seio do trágico como o efeito dessa Outra relação com o tempo que é ao meu ver, a sublimação da pulsão.”  É nessa questão da temporalidade do ato que a leitura do seminário, no dispositivo do cartel fez ressonância em mim com mais intensidade. Na clínica isso me parece muito evidente: que após um ato analítico o tempo do sujeito, a relação do sujeito com o tempo muda.

Tudo está, depois do ato, num tempo e num lugar diferente em relação ao Outro.

Silvie Le Poulichet (1996), nos fala de um tempo ativo em psicanálise. A fala de um analisando na sessão desenvolve uma série de movimentos. Essa fala ressoa com o que
a precede e com o que a segue de um modo inesperado, cada elemento encontrando sentido apenas nesse encadeamento que o informa. Além disso essa fala pode despertar uma fala mais antiga esquecida e ainda pode significar um ato de fala pelo qual
identifica o analista, tornando o “pronto para uso” da fantasia. Segundo ela, nesse momento se abriram as comportas diante da pressão de uma “onda pulsional” que não cessa de quebrar no tempo imemorial do infantil.Todos esses movimentos instauram na análise, ritmos, laços, composições singulares e identificações movediças. Sendo assim,
a experiência analítica nos pede uma ruptura com uma concepção clássica do tempo
universal, no qual sujeitos e objetos estariam passivamente submersos. Esse tempo da
psicanálise não está previamente constituído e instaura acontecimentos psíquicos
singulares.

Situando um pouco essa idéia do tempo na psicanálise, chamo a atenção para essa mágica do ato, mágica do próprio tempo que faz com que o tempo pareça abolido e um novo tempo comece. Para Lacan, “Um ato é ligado à determinação de um começo e, muito especialmente, ali onde há necessidade de fazer um, precisamente porque disso nada existe.” Pg 75 sem 15

A propósito do ato, na lição de 10 de janeiro de 1968, Lacan fala de seu funcionamento, quando cita os atos cerimoniais a partir dos quais algo da ordem do significante, que é considerado essencial, pode ser transferido. E que justamente nessa possibilidade do ato criar um novo começo é que reside a sua estrutura.

Ainda nessa lição, ponto alto do seminário para mim, Lacan cita uma parte de um poema de Rimbaud intitulado Por uma razão, e diz que o mesmo é a fórmula do ato.

Acredito que ler tal poema no início do cartel, teve o efeito de um corte que definiu um outro eixo em torno do qual a experiência clínica e a leitura da teoria se reorganizaram.

Incorporo ao texto esse poema do poeta, autor da famosa sentença: eu é um outro, citada
por Lacan no seminário em questão. Poema que nos lembra que um ato só será verdadeiramente psicanalítico se trouxer consequências e que os seus efeitos vão além
dele.

“À une raison”

Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie.

Un pas de toi, c’est la levée des nouveaux hommes et leur en-marche.

Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne, – le nouvel amour!

” Change nos lots, crible les fléaux, à commencer par le temps” , te chantent ces enfants. ” Élève n’importe où la substance de nos fortunes et de nos voeux” on t’en prie.

Arrivée de toujours, qui t’en iras partout.

“Por uma razão”

Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia.

Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha.

Tua cabeça se vira: o novo amor!

Tua cabeça se volta, – o novo amor!

“Muda os nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças diante de ti.

“Semeia não importa onda a substância de nossas fortunas e desejos “, pendem-te.
Chegada de sempre, que irás por toda parte “.

Iniciando um momento de concluir eu diria: a análise como propiciadora da instauração de novos tempos do sujeito e o analista, porque na posição de analista, como aquele que permite o manejo do tempo de uma forma não linear.

Numa poesia chamada, Cortar o tempo, Carlos Drumond de Andrade diz:
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.”

Na poesia há a esperança do tempo, na psicanálise a esperança do ato que transforma
o tempo.

Bibliografia
CRUGLAK, CLARA (2012). O nó borromeu como suporte estrutural da clínica
psicanalítica lacaniana. Texto referente a seminário proferido no Espaço Moebius
Psicanálise, Salvador, BA.

DIDIER-WEIL, Alain e SAFOUAN, Moustapha(2009).Trabalhando com Lacan: na
análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, J. O seminário: Ato psicanalítico (1967-1968). (Versão brasileira fora do
comércio)

POLLO, VERA (2011) A clínica do ato. A passagem ao ato e o acting out.
http://psicanalisesaudemental.blogspot.com.br/2011/08/xiii-jornadas-de-formacoesclinicas-do.html

ROSA, GUIMARÃES (1993). Grande Sertão: Veredas. 3a edição, Rio de Janeiro: José
Olympio.

LE POULICHET, S.(1996). O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
Autor Leomara de Araujo Bürgel, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de
Curitiba.
laburgel@gmail.com.br

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